Nos idos de 60 a coisa ficou feia. Muito feia! A quartelada tinha dado certo, os militares empalmaram o poder, açulados pela elite política e econômica e, agora, ao contrário da intenção destes, não estavam propensos a largar o osso. Gostaram e começaram a fazer uma limpa em todas as lideranças civis, mesmo as que participaram ativamente do golpe.
A frase de Pedro Aleixo, um dos bastiões morais que apoiou o golpe e se tornou vice- presidente da República (mais decorativo que o Temer, pois quando o general presidente adoeceu, ele não assumiu em seu lugar), dita quando a ditadura editou o Ato Institucional nº 5, materializou-se com trágicas conseqüências: “O problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.
Oficialmente, hoje, o Brasil não vive uma ditadura, mas está cortejando-a descaradamente! E, agora, não são apenas os guardas das esquinas que se tornam perigosos, mas agentes do Estado, estudados, concursados e engravatados, que interpretam e executam a lei de acordo com suas próprias convicções e interesses, confiados na fraqueza de governantes e parlamentares corruptos e na tibieza de uma Justiça mais preocupada em aparecer bem na mídia do que em aplicar a Constituição.
Mas, dizia eu, a coisa ficou muito feia! Havia uma briga intestina (está aí uma palavra adequada para indicar disputa de poder entre golpistas) entre os militares e políticos vencedores e isto se refletia diretamente na população, com maior impacto punitivo sobre movimentos sociais ainda incipientes, sobre sindicatos, sobre estudantes e, claro, sobre todos os que se opunham à ditadura. Os guardas das esquinas de então – polícias, em geral, e militares de média graduação – sentiam-se à vontade para cumprir suas próprias leis, sem qualquer receio que as leis verdadeiras os incomodasse.
Eu nunca fui um revolucionário. Matar e/ou morrer não eram verbos que eu sentisse vontade de conjugar… Mas, desde o enfrentamento aos cavalarianos da Polícia Montada num comício de apoio ao governo constitucional, antes da quartelada, eu tinha me tornado um ajudante da causa democrática, que saia de madrugada pelas ruas de Belo Horizonte – geralmente, éramos 04 ou 05 estudantes do ginásio – pintando muros e fachadas com frases-padrão e xingamentos, tipo: ‘abaixo a ditadura’, ‘democracia já’, ‘gorilas, go home’, ‘milicos de merda’ e outras gracinhas do mesmo quilate, nos contrapondo ao CCC – Comando de Caça aos Comunistas, que fazia pichações com gracinhas de outro quilate.
Daí aconteceu meu ‘grand finale’ revolucionário na juventude : o Centro Estudantil do Colégio Estadual, que tinha sido proibido de funcionar logo depois do golpe – assim como todos os Diretórios Acadêmicos das Faculdades – tinha sido reaberto, e a nova diretoria (não me lembro se eleita ou nomeada pelo diretor do Colégio) programou um show musical no mata-borrão (o auditório projetado por Niemeyer). Cantor convidado: Bituca, àquela época o ainda desconhecido Milton Nascimento.
A diretoria do Colégio não gostou, sabe-se lá porque… Milton ainda não tinha composto Travessia (“Vou seguindo pela vida / Me esquecendo de você / Eu não quero mais a morte / Tenho muito que viver…”) e não podia ser considerado um ativista político. Talvez, então, porque ele fosse preto ou o achassem muito feio… o que talvez não fosse agradável para as famílias classe média cujos filhos estudavam no Colégio Estadual… O fato é que Bituca foi vetado! Houve um protesto generalizado dos estudantes, uma espécie de greve bem comportada – a maioria dos alunos não entrou nas salas de aula e ficou zoando por baixo da régua (o corpo do colégio), para desespero da diretoria, que suspendeu as aulas naquele dia.
No dia seguinte, quando voltamos ao colégio, a imensa maioria sem qualquer espírito combativo, fomos informados que dois diretores do Centro Estudantil tinham sido “chamados” a prestar esclarecimentos no DOPS (naquela época não havia esta expressão bonita, ‘condução coercitiva’, para indicar a prisão de alguém) e permaneciam lá, sem qualquer perspectiva de serem soltos.
Por mais alienados que fossem os estudantes secundaristas filhos da classe média mineira, a maioria deles sabia o que significava ir para o DOPS…! E um grupo deles, eu inclusive, saímos do colégio, descemos a rua Carangola até o Minas Tênis Club, entramos pela Praça da Liberdade e descemos a avenida João Pinheiro até o DOPS, um bandinho de garotos e garotas uniformizados de verde e branco falando alto, gesticulando muito, e sem uma noção precisa do que realmente estava fazendo.
Os guardas da esquina não gostaram. Cercaram o grupo e, aleatoriamente, separaram uns, eu inclusive, que levaram para o prédio do DOPS. E dispersaram os outros. Os cinco escolhidos, três garotos e duas garotas, foram mantidos num corredor comprido, de pé e virados para a parede, à espera, segundo os guardas, de um delegado. Que nunca apareceu! Mas os guardas sabiam fazer bem o seu trabalho: cada vez que um andava pelo corredor, ia passando a mão na nossa bunda (e coxas ou peitos das meninas) ou dando cachuletas nas nossas orelhas ou coques na nossa cabeça.
E não aconteceu mais nada… Fomos liberados umas três horas depois, junto com os diretores do Centro Estudantil, libertados por influência de um político graúdo, que era pai de um colega meu de classe. Mas a violência psicológica, muito mais que passadas de mão, cachuletas ou coques, ficou marcada para sempre, e tanto, que eu só voltei a mexer com política já no Curso de Jornalismo.
Desde a redemocratização, tais coisas não aconteciam mais, pelo menos por razões políticas. Desde a Lava Jato porém, elas passaram a ser possíveis de acontecer de novo. Agora, com endosso jurídico. O que antes era imposto pela força das armas, agora é viabilizado pela interpretação pessoal das leis.
Quando você lê o depoimento do blogueiro Eduardo Guimarães, que foi conduzido coercitivamente para depor em uma delegacia de São Paulo – “Às 6 horas do dia 21 de março deste ano, eu e minha esposa dormíamos quando escutamos um barulho semelhante a arrombamento da porta da frente do nosso apartamento (…) Minha filha Victoria, 18 anos, 26 quilos, portadora de paralisia cerebral, que dormia no quarto ao lado, assustou-se com os golpes desferidos pelos policiais na porta e começou a reclamar, como faz quando está nervosa (…) Detalhe: minha mulher vestia roupas sumárias de dormir. Pediu para se trocar. Não obteve permissão dos policiais (…) Fui ouvido (na Delegacia) sem um advogado com condições de me orientar sobre o que eu preci
sava ou não responder. Tudo isso após o trauma pelo qual eu, minha esposa e minha filha doente passamos ao raiar do dia (…) – eu sinto que as coisas estão ficando feias de novo.
E depois que a coisa ficou muito feia, nos idos de 60, os guardas das esquinas perderam qualquer controle e se tornaram torturadores, assassinos frios e brutais. Agora, depois da espetacularização das conduções coercitivas (três/quatro carros pretos madrugando à porta da casa, amedrontando vizinhos e conhecidos, policiais de uniforme preto, gorro, máscara e óculos pretos entrando casa a dentro, abrindo gavetas, levantando colchões, confiscando lap-tops e celulares), o que os guardas das esquinas de hoje farão até chegarmos a 2018? Se chegarmos…